
Edição #17
Rio de Janeiro, 2011
“DKANDLE tece paisagens sonoras transcendentes vibrantes e multicoloridas, misturando texturas Shoegaze difusas e reverberantes, meditações Dream Pop hipnotizantes, tons Grunge lamacentos e tensões Post-punk temperamentais, intensificadas com lirismo comovente e vocalizações emotivas e pensativas”


Estamos no meio de uma multidão que passa apressadamente por nós. Ao redor, vários edifícios altos. Barulho de buzinas de automóveis e pessoas conversando, misturado com várias músicas, vindo de várias direções. Onde estamos? Quem são essas pessoas? O que elas fazem aqui?
Essas são as perguntas que foram feitas a mim pelo meu amigo ET que, disfarçado de humano, aceitou o meu convite para dar um passeio pelo Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, e estava ansioso para entender esse local, tão exótico aos seus olhos.
Várias pessoas passavam apressadas e mal percebiam a nossa presença. "Pra onde vão tão apressadas?", me perguntou. "Bem, cada um tem o seu motivo, mas a maioria vem aqui por causa do seu trabalho, mas também tem estudantes indo para as suas escolas, pessoas que vieram aqui fazer algum tipo de compra, ou que estão de passagem para outro lugar."
De repente, alguém me ofereceu um papelzinho. Meu amigo intergaláctico o pegou da minha mão e perguntou o que estava escrito (ele não sabe ler português, nos comunicamos através de uma espécie de tradutor automático). "É uma propaganda de um Sexshop. Aquela pessoa está trabalhando, ela é paga por este Sexshop para distribuir esses panfletos nas ruas". "Sexshop? O que é isso?" "É uma loja que vende produtos eróticos. Muitas pessoas têm fetiches e fantasias sexuais, e encontram nesse tipo de loja acessórios, revistas e vídeos eróticos, além de roupas especiais". "Roupas especiais? Tem alguém aqui vestido assim?" "Não", respondi rindo, "não é comum usarem essas roupas nas ruas, pois nós humanos vivemos numa espécie de república dos olhos, onde as pessoas se comportam e se vestem na rua de modo a obter a aprovação dos olhares alheios, por isso geralmente a maioria das pessoas se veste seguindo o código de vestimenta daquele ambiente". "Engraçado, no meu planeta ninguém usa roupa".
Comecei a explicar que até há cerca de 500 anos atrás, por milhares de anos, os habitantes que viviam aqui costumavam andar nus, apenas adornavam o corpo com pinturas decorativas até que um grupo de pessoas que vieram de longe chegaram aqui se e auto-declararam donas dessas terras, se apossando delas através da força, pois se achavam pessoas mais evoluídas e desenvolvidas. Essas pessoas impuseram aos locais os seus costumes, inclusive o de usar roupas, para esconder as suas 'vergonhas'.
Ele me perguntou o que eram essas tais vergonhas. Quando ia explicar, fomos interrompidos por gritos de um homem com um holofote que parecia bastante irritado. Chegamos mais perto e conseguimos entender melhor o que ele dizia. "Arrependam-se dos seus pecados! Só Jesus Salva! Vocês arderão no fogo do inferno se não aceitarem o Senhor Jesus Cristo como o seu único salvador!" Um outro homem distribuía panfletos. "Arrependam-se e convertam-se, irmãos!", disse ele, nos entregando um panfleto que repetia mais ou menos o que o homem do holofote dizia. Meu amigo fez cara de que estava incomodado com aquela gritaria e me puxou dali. "Que barulho desagradável! Ainda bem que nos afastamos. Mas me diga por que ele está tão alterado? Quem é Jesus Cristo? E o que eles quiseram dizer com se arrepender? Não entendi nada!"

Convidei meu amigo ET para sentarmos num banco, pois para que ele compreendesse, teria que voltar muito no tempo.
"Bem, o que acontece é que nós humanos originalmente vivíamos nas árvores, e aos poucos passamos a descer mais das árvores e viver mais no chão. Descobrimos como manipular o fogo, e isso criou um senso de comunidade e humanidade. Com o tempo fomos formando grupos familiares e de comunidades. Os alimentos passaram a ser plantados, alguns animais passaram a ser domesticados, então o homem começou a ficar com mais tempo livre, o que gerava tédio, e com isso ele passou a ocupar a sua mente com diversões. Então começou a balbuciar palavras que eram prazerosas aos ouvidos. Aprendeu a fazer barulhos ritmados com madeira, e surgiu então a música, que assim como a fala, surgiu como forma de divertimento, onde os sons passaram a identificar objetos.
Com o tempo, as palavras passaram a exprimir atos e sentimentos também, e isso acabou culminando na linguagem. Vieram os questionamentos sobre quem somos e de onde viemos. O homem ficava muito assustado com os sons de trovões e relâmpagos, e imaginava, na sua ignorância, que aquilo era manifestação de raiva de algum ser superior, ou um deus. Do sentimento de pavor, nasceu também o sentimento de reverência, pois ele reconhecia que deveria haver alguma força superior. A partir daí começou a formular teorias sobre deuses, sobre a sobrevivência da alma após a morte, sobre mundos invisíveis etc. Quando sonhavam com algum parente morto, pensavam que era o espírito dele se comunicando do mundo dos mortos. Os homens antigos obedeciam aos deuses imaginados por eles mesmos porque tinham medo de ser punidos depois da morte caso desobedecessem as suas leis fictícias, que na verdade foram formuladas pelos sacerdotes das religiões.
Então, há alguns milhares de anos atrás, surgiu uma religião nascida de escravos fugitivos do Egito, cujo deus era descrito por eles como sendo vingativo, rancoroso e impiedoso, pois era fruto de seu ressentimento contra a subjugação que sofreram por vários anos. Desse ressentimento do escravo, milhares de anos depois surgiu a religião cristã, que adorava e ainda adora Jesus Cristo, um pregador que, dizem, viveu há uns 2.000 anos atrás, e seus seguidores são herdeiros dessa religiosidade ressentida, que passou a ver o corpo como um obstáculo ao Paraíso pós-morte no qual eles crêem. Existe entre eles a crença de que devemos abdicar dos prazeres do mundo, e nos arrepender de ter buscado o prazer, porque para eles, o nosso corpo é desprezível, o planeta é um lugar de expiação e o Paraíso virá somente após a morte, e como sempre foram escravos - são até hoje - precisam acreditar em algo melhor para as suas vidas miseráveis. Essas pessoas são exortadas a viver em concordância com as leis inventadas pela sua religião, para poderem ser salvas da destruição que, dizem, Deus trará ao planeta, destruindo todos os que não o adoram e nem seguem as suas leis, mandando-os para o Inferno, um local de sofrimento eterno".
Meu amigo ET parecia totalmente incrédulo. "Você quer dizer que eles acham que fomos criados por um Criador que vai destruir quem não o serve?" "Isso mesmo", respondi. "Eu não sei nada sobre a nossa origem", ele continuou, "mas se nós fomos criados, como eles dizem, então não existíamos antes, não tínhamos consciência e nunca pedimos para existir, certo? Alguém nos criou do nada, sem que houvesse um desejo nosso para isso. Nós existimos pela vontade dessa força criadora. E então, criados independentemente da nossa vontade, esse criador estipulou leis para serem seguidas por nós, que nunca pedimos para existir, e se nós não seguirmos essas leis... seremos destruídos? Isso não faz o menor sentido! Esse tal Criador não poderia destruir a sua própria criação, pois Ele mesmo é a causa original das consequências dessa criação. Como poderia haver justiça nele destruir um ser que não pediu para existir, que só existe porque Ele o criou? Tudo seria culpa dele em última instância. Então, ou todos são salvos ou ninguém está salvo!"
Concordei, e adicionei: "É como se o Deus cristão fosse um treinador de um time de esportes que obriga os jogadores a entrar em campo 'por livre e espontânea pressão', esperando que eles gostem de estar ali jogando, e quem não gostar do jogo vai ser queimado vivo. Total absurdo!"
"É mesmo!", respondeu ele." Vamos lá dizer isso a eles!"
"Não, deixa pra lá, esquece. Eles são convictos de que têm a Verdade e interpretam tudo que vá contra o que eles dizem como sendo maligno. Se formos lá falar com eles, não vão querer nos ouvir, e ainda vão nos xingar e amaldiçoar. Não adianta falar com eles."
Um aparelhinho começou a apitar e meu amigo disse que precisava ir embora pois a nave iria partir em breve. E assim terminamos o nosso breve tour pelo Largo da Carioca.
Será que ele vai querer nos visitar outra vez?...
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